quinta-feira, novembro 24

Memórias

Eu sempre tento falar em passant quando o assunto é a minha infância ou adolescência, e sabe de uma coisa, essa é a primeira vez que assumo isso abertamente, e já que estou a fim de cavoucar nesse poço que tranquei há tantos anos. Decidi que hoje vou falar um pouco à respeito dos motivos que fizeram-me lutar tantos anos pra esquecer essa época.
Até que da minha infância não tenho tantas reclamações, pode-se dizer que ela foi até que bem “normal”. Nasci e permaneci no interior do Rio Grande do Sul até meus 18 anos, bem no interior do Rio Grande do Sul (e bota interior nisso), minha cidade natal tem um nome no mínimo excêntrico, Vacaria, o que já me rendeu muitas gozações, mas não estou aqui pra falar disso, vou exorcizar outros fantasmas.
Em Vacaria tudo era muito lento e na minha casa parecia mais lento ainda, sou filho de uma costureira (hoje ela é auto-entitulada designer) que seguramente é a mulher mais forte que conheci na minha vida e de um vendedor meio que aposentado, mas que em suas limitações iniciou-me nos prazeres gastronômicos e enólogos que aperfeiçoei com os anos e preservo até hoje (prometo escrever a respeito deles, outro dia).
Por ser de uma família religiosa, só fui começar a ter acesso aos prazeres da vida a partir da adolescência, os primeiros porres, as primeiras “paqueras” que embalaram minha iniciação aos prazeres solitários, o cigarro (vício que tento me livrar até hoje), mas tinha um detalhe que na época dava uma tônica de tortura na minha vida. Por ser muito pequeno, magérrimo e com uma cabeça desproporcional para o meu tamanho, me tornei foco de chacotas na rua, meus amigos eram fortes, viris, com braços e pernas torneados, e eu, magro de dar dó, não fosse só isso, por ficar muito tempo em casa, já que minha mãe só me liberava nos fins-de-semana para sair e brincar, uma espécie de condicional, nunca dava tempo de eu ser “aceito” pela turma, de certa forma eu era o eterno “garoto novo”.
Sempre fui péssimo em esportes, nunca fui o primeiro à ser escolhido para as peladas, meu auge foi quando fui o antepenúltimo na escolha, e isso na escola era o que separava os “legais” dos “otários”, adivinhem qual era a minha turma. Sendo um dos “otários”, meus outros amigos “otários” eram um grupo bem heterogêneo, tinha o “Cadela Manca” (um abraço Luciano), que por um má-formação congênita teve que operar diversas vezes os pés, lembro muito dele, porque na 3ª série ele foi eleito o melhor aluno da classe e eu o segundo melhor, como prêmio ganhamos dois daqueles copinhos retráteis, ele escolheu primeiro, por torcer para o Internacional, quis o vermelho, sobrou pra mim o azul, mas como sou gremista doente desde que nasci, foi melhor que ser o primeiro.
Mas o pior não era exatamente na escola, meu sofrimento era que um dos caras mais “famosos” da escola, era meu vizinho, ele fazia sucesso com todo mundo, fomos amigos até começarmos a entender a divisão entre quem era e quem não era legal, inclusive, odiei ele por um longo tempo, pois além de deixar de ser meu amigo, tinha dado para me torturar, nessa época é que passei a me refugiar nos livros, o que me faz agradecer ao “Luva” (apelido que sempre achei idiota) pelo pavor que me impelia, afinal, com os livros aprendi o quanto o mundo era maior que Vacaria.
Lembro muito bem que todos os anos o Lions Club da cidade promovia o aguardadíssimo “Festival do Refrigerante”, onde fizemos nossas primeiras incursões pelo universo das conquistas, todo mundo comprava roupas novas para ir, enquanto que eu, se conseguisse ir, já devia estar mais que satisfeito, lembra que minha família era muito religiosa (pra não dizer carola) , nessas “festinhas” existia um misto de inocência e hormônios, garotos dançando suas primeiras músicas lentas numa tentativa de estrear nos caminhos e lábios das meninas, o que seria muito mais fácil, não fosse que o pretenso Don Juan usava camiseta com a estampa do Mickey, ao mesmo tempo via-se os menores brincando de correr ao redor dos pretensos apaixonados, nunca consegui o tão sonhado beijo, meu máximo foi uma música lenta com a minha musa da época, a música nunca esqueço, era o último lançamento, “Astronauta de Mármore” do Nenhum de Nós, mas era um tempo embalado por cachorros quentes horríveis, refrigerantes sem gás, um restaurante com o nome sugestivo de Ilha do Mel, mas era a nossa noite de herói, a noite em que nossa inocência embalava desejos não tão inocentes, devo confessar que hoje lembro com uma saudade às vezes melancólica, em outras apenas nostálgica, mas com certeza de que foi uma das últimas gerações de adolescentes envoltos numa mágica que não existe mais hoje, tempo de amores platônicos que vivi com sofreguidão, mas isso é assunto pra outra história, outro dia escrevo.

Nenhum comentário: